quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Dificuldades no diagnóstico de TDAH em crianças: Isabella G. S. de Souza; Maria Antônia Serra-Pinheiro; Didia Fortes; Camilla Pinna

RESUMO
O transtorno do déficit de atenção e/ou hiperatividade (TDAH) é uma doença de alta prevalência em crianças em idade escolar. Erroneamente entendido anteriormente como um diagnóstico de baixa morbidade, o TDAH é reconhecido atualmente como uma condição importante, não só pelo forte impacto funcional e social como também pela alta prevalência de comorbidades psiquiátricas. Déficits cognitivos globais e transtornos invasivos do desenvolvimento assim como transtornos do aprendizado são condições complexas que, quando estão associadas aos sintomas de TDAH, têm seus quadros agravados, requerendo maior atenção e estratégias de tratamento mais individualizadas. O objetivo deste artigo é uma discussão sobre esses diagnósticos diferenciais que representam um desafio na prática clínica.

INTRODUÇÃO

Durante muito tempo, o transtorno do déficit de atenção (TDAH) foi entendido equivocadamente como um diagnóstico com poucas implicações na vida dos pacientes. Comumente, a criança era avaliada e tratada pelo não-especialista, que se baseava nas queixas de hiperatividade e impulsividade para fazer o diagnóstico, referidas pelos pais ou professores, permanecendo a crença de remissão da sintomatologia na puberdade. A crença de que se tratava de transtorno que acomete principalmente meninos com problemas comportamentais até hoje é bastante difundida. Nos últimos anos, porém, tanto a experiência clínica quanto as recentes pesquisas em genética, neuroimagem e neuropsicologia têm contribuído para uma drástica mudança na forma de entender o TDAH.

Diversos estudos comprovam que mais de 50% dos pacientes mantêm sintomas na vida adulta, com significativo comprometimento na vida social, acadêmica, laborativa e familiar (Biederman et al., 1993). Tanto o processo diagnóstico quanto o tratamento do TDAH são complexos, não só pelo caráter dimensional dos sintomas de desatenção e/ou hiperatividade, mas também pela alta freqüência de comorbidades psiquiátricas apresentadas pelos pacientes. Profissionais da área de saúde mental da infância e adolescência freqüentemente se deparam com situações clínicas em que o diagnóstico do TDAH deve levar em consideração a presença de diferentes condições, tais como déficits cognitivos, transtornos do aprendizado ou transtornos invasivos do desenvolvimento, sendo fundamental o melhor entendimento da complexidade desses casos para adequada orientação, elaboração da intervenção terapêutica e avaliação da necessidade do suporte educacional e emocional para esses pacientes e suas famílias.

O objetivo deste artigo é abordar essas situações clínicas limítrofes, em que o diagnóstico diferencial ou comórbido é muito complexo, especialmente transtornos invasivos do desenvolvimento, retardo mental e transtornos do aprendizado, além de discutir brevemente abordagens terapêuticas na presença da comorbidade.



TDAH TRANSTORNOS INVASIVOS DO DESENVOLVIMENTO

Os transtornos invasivos do desenvolvimento (TID) representam um grupo de doenças que afeta o desenvolvimento cognitivo de crianças, no qual a dificuldade na interação social é o principal déficit observado, ocasionando significativo comprometimento da socialização, comunicação e adaptação ao longo da vida. Recentes estudos epidemiológicos demonstram prevalência de 0,6% de TID na população geral, sendo autismo, síndrome de Asperger e transtorno invasivo não especificado os mais comuns (Chakrabarti e Fombonne, 2005).

Embora nos casos de transtornos invasivos do desenvolvimento (TID) as queixas de hiperatividade e/ou desatenção sejam freqüentes, a presença de TID é critério de exclusão para o diagnóstico de TDAH, de acordo com os atuais critérios propostos pela DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth Edition). Sintomas de desatenção, hiperatividade e impulsividade em pacientes portadores de TID são semelhantes aos apresentados por crianças portadoras de TDAH e constituem uma queixa freqüente entre pais e professores. Hattori et al. (2006) postulam que crianças portadoras de TID e crianças portadoras de TDAH compartilhariam sintomas em comum, tais como comportamentos repetitivos, dificuldades em interação social e em comunicação, quando comparadas com o uso de uma entrevista estruturada (High Functioning Autism Spectrum Screening Questionnaire – ASSQ). LeCavalier (2006), avaliando um grupo de 487 crianças e adolescentes portadores de TID em classes de educação especial, documentou queixas de dificuldades em concentração, distraibilidade, inquietude e dificuldades para completar tarefas em 50% da amostra.

Contestando a impossibilidade do diagnóstico de TDAH em crianças com TID, como determinado pela DSM-IV, vários autores têm se esforçado para documentar a validade desse diagnóstico comórbido e compreender melhor as especificidades dessa condição. Gadow et al. (2006), avaliando grupos de crianças, portadoras ou não de TID em relação aos subtipos de TDAH, demonstraram que crianças com a comorbidade TID-TDAH, à semelhança do grupo sem TID, apresentavam mais comprometimento funcional e mais sintomas psiquiátricos comparadas às crianças apenas com TID. Do mesmo modo, Holtmann et al. (2007) descrevem o impacto dos sintomas de desatenção e/ou hiperatividade em uma amostra composta por 182 crianças portadoras de TID e concluíram que a presença de TDAH implicava maior gravidade e maior prevalência de comorbidades psiquiátricas para essas crianças, sendo o tratamento mais eficaz envolvendo a abordagem de ambos os diagnósticos (TID e TDAH). Esses estudos sugerem a validade do diagnóstico de TDAH em crianças portadoras de TID.

O tratamento dos sintomas de hiperatividade e desatenção em crianças portadoras de TID tem sido alvo de interesse crescente por parte de pesquisadores e clínicos e, embora a etiologia do TID ainda permaneça desconhecida, propostas farmacológicas têm se mostrado eficazes no controle de sintomas como agressividade e irritabilidade. Embora psicoestimulantes sejam a primeira escolha para o tratamento dos sintomas de TDAH, crianças com transtornos invasivos apresentam resposta terapêutica menos satisfatória. Ao longo dos anos, alguns estudos com psicoestimulantes conduzidos em amostras pequenas de pacientes com autismo demonstraram alta prevalência de efeitos colaterais e menor eficácia (Stigler et al., 2004). Alguns pesquisadores demonstram possível exacerbação de tiques motores e indução de comportamentos compulsivos em crianças tratadas com psicoestimulantes (Borcherding et al., 1990). Contrariando essa visão, a eficácia de psicoestimulantes para controle de comportamentos estereotipados em crianças com autismo foi documentada por Handen et al. (2000). A Research Units on Pediatric Psychopharmacology (RUPP) Autism Network, em 2005, conduziu um estudo no qual metilfenidato mostrou eficácia superior ao placebo para controle de comportamento hiperativo/impulsivo em crianças autistas. Não foram demonstrados efeitos significativos em comportamento opositivo – desafiador, ou em comportamentos repetitivos, e o efeito colateral mais comum foi a irritabilidade.

Dois estudos com medicação agonista alfa-adrenérgica (clonidina) demonstraram eficácia superior ao placebo no controle dos sintomas de TDAH em crianças com TID (Jaselkis et al., 1992). Recentemente, estudos piloto têm demonstrado eficácia da amantidina, atomoxetina e guanfacina no tratamento dos sintomas de TDAH em pacientes com TID (King et al., 2001). Perwien et al. (2004) demonstraram melhora significativa em funcionamento social com o uso de atomoxetina em crianças com TID. Em outro estudo, com 16 crianças portadoras de TID apresentando sintomas proeminentes de TDAH, Arnold et al. (2006) demonstraram eficácia da atomoxetina na redução de sintomas de hiperatividade, com boa tolerabilidade. Os efeitos adversos mais comuns foram intolerância gastrointestinal, fadiga e taquicardia.

O tratamento de sintomas de TDAH em comorbidade ao quadro clínico de TID é complexo, devendo ser individualizado em cada paciente. Psicoestimulantes podem ser uma boa opção para crianças portadoras de TID com sintomas de TDAH, embora sua eficácia nesse grupo seja menor do que naquele com desenvolvimento psicomotor normal e os efeitos colaterais sejam mais comuns (Posey et al., 2007). Um maior número de estudos sobre essa provável comorbidade se faz necessário para uma maior definição das melhores estratégias.



TDAH E DÉFICITS COGNITIVOS GLOBAIS

O conceito de retardo mental (RM) desenvolvido pela Associação Americana de Retardo Mental, adotado pela DSM-IV, requer a combinação de baixo QI associado a significativo prejuízo adaptativo. Aproximadamente 85% dos casos são de retardo mental leve, que é geralmente diagnosticado após os 5 anos de idade, no período escolar, quando ocorre uma maior demanda social e intelectual. Em mais de 50% dos pacientes portadores de RM, outras condições psiquiátricas estão presentes, sendo as mais comuns o transtorno de controle do impulso, de ansiedade, do humor e TDAH. Em contraste aos quadros de RM grave, com alta prevalência de alterações genéticas e lesões cerebrais, a etiologia do déficit cognitivo leve geralmente é idiopática, estando fortemente associada ao baixo nível socioeconômico (Yudofsky, 2004).

Ainda hoje, o diagnóstico de TDAH em crianças com déficits intelectuais é controverso, uma vez que uma diminuição do de atenção e condutas inadequadas são características dessa população, podendo ser mais bem explicadas pela capacidade intelectual deficitária, o que levaria à dificuldade do diagnóstico da comorbidade TDAH-RM. Em um estudo, no qual foram avaliadas 5.718 crianças sem ou com atraso no desenvolvimento intelectual (capacidade cognitiva limítrofe ou retardo mental leve), Voigt (2006) documentaram que TDAH não era um quadro universal, constituindo uma comorbidade verdadeira e devendo ser tratada como tal. Em um estudo de revisão, Barkley e Faraone (2006) avaliaram a validade do diagnóstico de TDAH em crianças com RM observando correlação clínica, história familiar, resposta terapêutica, estudos laboratoriais, curso e prognóstico e concluíram que essa comorbidade era válida e poderia influenciar no tratamento.

Gilberg et al. (1986) estimam que de 7% a 18% dos pacientes portadores de RM apresentem diagnóstico comórbido de TDAH. Pearson et al. (2004), em um estudo envolvendo 95 crianças com RM, divididas em dois subgrupos com ou sem TDAH, puderam observar que o grupo com sintomas de TDAH apresentava maiores índices de sintomas de depressão, conflito familiar, não adesão ao tratamento, ansiedade, inadequação social e pior rendimento acadêmico.

A eficácia do metilfenidato, comparativamente ao placebo, na redução dos sintomas de TDAH em crianças com RM foi documentada em um estudo conduzido por Pearson (2003). Da mesma forma, o uso de clonidina e de antipsicóticos atípicos, especialmente risperidona, no controle de sintomas comportamentais apresentados pelos pacientes com RM-TDAH em associação, tem se mostrado eficaz (Agarwal et al., 2001; Aman et al., 2002 e 2004; Correia Filho et al., 2005). Um estudo com 45 pacientes com RM moderado e sintomas de TDAH revelou que tanto a risperidona quanto o metilfenidato se mostraram eficazes na redução dos sintomas de desatenção e/ou hiperatividade, tendo o grupo tratado com risperidona apresentado melhor resposta, tanto na escala de desatenção quanto na de hiperatividade (Correia Filho et al., 2005).



TDAH E TRANSTORNOS DO APRENDIZADO

A boa adaptação ao ambiente escolar, o relacionamento interpessoal adequado com os pares e as boas notas são padrões esperados de uma criança em idade escolar. A presença de TDAH, transtornos do aprendizado (TA) ou, ainda, a presença de ambos os diagnósticos em comorbidade representam fatores de risco importantes para o mau rendimento escolar. Os TA podem ser entendidos como um fracasso para desenvolver habilidades específicas esperadas para a idade e escolaridade, na ausência de privação sensorial, doença neurológica ou déficit intelectual global significativo. Ainda hoje, as dificuldades acadêmicas experimentadas por portadores de TA são freqüentemente malcompreendidas e entendidas apenas como um reflexo de desmotivação e/ou pouco empenho, sendo negligenciada a investigação adequada dessas condições primárias.

O transtorno de leitura ou dislexia é o transtorno de aprendizado mais comum, ocorrendo em cerca de 8% das crianças em idade escolar. Estimativas mais conservadoras apontam para a prevalência de TA em aproximadamente 25% das crianças com TDAH (Semrud-Clikeman et al., 1992). Tanto TDAH quanto dislexia estão associados a múltiplos déficits neuropsicológicos, em particular um comprometimento das funções executivas (Lazar e Frank, 1998). A presença de TDAH aumenta significativamente o comprometimento do processamento de leitura em pacientes disléxicos: a leitura requer considerável nível de atenção para selecionar as informações relevantes e ignorar estímulos menos importantes. Crianças com a comorbidade TDAH-dislexia apresentam mais problemas comportamentais, menor auto-estima, mais abandono escolar e um pior prognóstico quando comparadas ao grupo com TDAH ou dislexia isoladamente (Willcut et al., 2001).

Na escrita, é freqüente a presença de disgrafia em pacientes portadores de TDAH. Nesses pacientes, a letra encontra-se prejudicada no seu aspecto grafomotor, tanto pelas dificuldades de coordenação motora fina quanto pela falta de organização. Diferente da disgrafia, a disortografia é caracterizada por dificuldades na fixação das representações ortográficas, no planejamento e na elaboração das seqüências narrativas e no uso de vocabulário apropriado. De modo geral, a manutenção de tópico e o planejamento e estruturação de relatos orais estão preservados e bem desenvolvidos, discrepantes das dificuldades com relatos escritos.

O tratamento dos sintomas de TDAH pode melhorar a habilidade de priorizar estímulos relevantes, a memória operacional (de trabalho), o armazenamento e a recuperação do material aprendido (Wilens e Spencer et al., 2000). A resposta ao tratamento com psicoestimulantes em crianças com a comorbidade TDAH-dislexia é semelhante àquela observada no grupo diagnosticado com TDAH apenas (Elia et al., 1993). O uso de psicoestimulantes em crianças com TDAH-dislexia, conforme demonstrado por Keulers et al. (2006), aumenta o número de palavras corretamente lidas.

O transtorno não-verbal do aprendizado (TNVA) tem recebido muita atenção por parte de profissionais de saúde mental, representando aproximadamente 5% a 10% da população que atende aos critérios para transtornos do aprendizado. Entre os sintomas apresentados por esses pacientes, estão dificuldades com raciocínio matemático, habilidades visoperceptivas e visomotoras, habilidades sociais, reconhecimento de emoções e abstração. Embora apresentem bom vocabulário e memória verbal normal, o discurso é prejudicado por ausência de prosódia e dificuldades em reconhecimento dos aspectos não-verbais da linguagem. Pacientes com TNVA mostram-se mais propensos à depressão, à ansiedade e também à psicose na adolescência. Sintomas de desatenção e hiperatividade são freqüentemente observados nesses pacientes. Quando há a comorbidade TDAH-TNVA, parecem existir dificuldades mais significativas em matemática e no convívio social e, notadamente, maior padrão de atitudes impulsivas e inadequadas.

O tratamento dos sintomas de desatenção e hiperatividade em pacientes com a comorbidade TNVA-TDAH é potencialmente importante do ponto de vista clínico, porém são poucos os estudos disponíveis até o momento que esclarecem a melhor terapêutica para essa comorbidade.



CONCLUSÃO

Pacientes com sintomas de TDAH na presença de déficits cognitivos, transtornos invasivos do desenvolvimento ou transtornos de aprendizado constituem um grupo com significativo comprometimento funcional, representando um desafio para o clínico em saúde mental na infância e adolescência. A limitação dos sistemas classificatórios atuais em psiquiatria infantil contribui para a dificuldade na realização do diagnóstico das comorbidades, uma vez que não abrange a complexidade de quadros clínicos tais como observados na prática clínica. O caráter dimensional e não categórico dos diagnósticos em psiquiatria da infância e adolescência surge como uma perspectiva de melhor compreensão e abordagem desses pacientes.

O tratamento dos sintomas de desatenção e de hiperatividade-impulsividade parece representar uma estratégica terapêutica importante nesses casos, embora ainda não existam diretrizes estabelecidas.

Potenciais conflitos de interesse: O GEDA – UFRJ recebe suporte de pesquisa do Laboratório Janssen-Cilag. Isabella Souza é palestrante do Laboratório Janssen-Cilag.

Fonte:http://www.ceesd.org.br/

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