sexta-feira, 24 de junho de 2011

A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO BIOLÓGICO PARA O EDUCADOR


Piaget preconiza que os sistemas cognitivos se desenvolvem sempre no duplo sentido de se diferenciarem de suas bases biológicas mantendo uma coerência crescente com as mesmas. Desse modo, ao compreenderem-se algumas características fundamentais dos sistemas biológicos, estaremos também compreendendo as bases do desenvolvimento cognitivo.

O conhecimento é um evento complexo que não consiste apenas em adquirir e armazenar informações, mas em organizá-las e regulá-las para a solução de problemas. Envolve, além disso, a necessidade de simbolização, imaginação e invenção. Para Piaget [1], as funções mais gerais que caracterizam o organismo, tais como: organização; adaptação e assimilação; conservação e antecipação; regulação e equilibração, também se encontram todas no campo cognitivo e desempenham o mesmo papel. Ele ressalta, porém, que as correspondências entre os caracteres essenciais do conhecimento e as funções orgânicas básicas, apesar de evidentes são parciais, já que o conhecimento supera-os continuamente.
A compreensão da inteligência como um todo não se limita a suas bases biológicas uma vez que ela as ultrapassa à medida que se desenvolve. Simplificando, como muitas vezes ouvi de Fernando Becker [2], as bases biológicas são necessárias, mas não suficientes para o desenvolvimento da inteligência. Assim sendo, podemos nos questionar: afinal, para que serve este tipo de conhecimento aos educadores?
O conhecimento biológico embasa muitas atividades humanas, como a agricultura, por exemplo. Assim, quando observamos uma horta verificamos que os agricultores preparam canteiros diferentes para semear cada tipo de vegetal, pois os canteiros com cenouras e beterrabas devem ter uma terra “mais pobre”, com alto teor de areia, já os canteiros para alface devem ter uma terra “mais rica” com bastante húmus. Além disso, há uma melhor época de semeadura para cada tipo de hortaliça e os agricultores sabem que não basta selecionar as sementes, pois é preciso também preparar a terra já que a qualidade das verduras dependerá da interação entre as sementes e o ambiente em que se desenvolverão. Esses saberes podem ter começado de forma empírica, mas foram sendo aprofundados à medida que avançou o conhecimento científico sobre a biologia das diferentes espécies cultivadas.
Por outro lado, ao lançarmos nosso olhar para o desenvolvimento do ser humano, parece, por vezes, que a sua natureza não é levada em conta para elaboração de algumas propostas pedagógicas. Não é possível aceitar com naturalidade que crianças, adolescentes, jovens e adultos possam detestar a escola. Defendo a tese de que uma melhor compreensão das bases biológicas do desenvolvimento cognitivo é fundamental para reversão deste tipo de quadro, a fim de podermos criar condições mais adequadas à biologia dos educandos e, dessa forma, possibilitar as aprendizagens significativas.
Não se modifica a prática docente sem uma adequada reflexão teórica e este é o objetivo principal dos meus textos, que foram inspirados pelas reflexões de Piaget sobre a biologia do conhecimento.
Existem algumas leis essenciais da vida que regem o desenvolvimento da inteligência, por exemplo, todo ato de conhecimento envolve ações no ou sobre o meio, não sendo possível separar conhecimento de ação do mesmo modo que não se pode separar a vida da interação. Ou seja, a interação é uma lei biológica essencial que rege todos os eventos que ocorrem nos sistemas vivos, entre os quais a inteligência humana, que faz parte da ontogenia ou desenvolvimento do ser humano.
Para Maturana e Varela [3], a ontogenia pode ser descrita como a história da mudança estrutural de uma unidade sem que esta perca sua organização. Esta contínua mudança estrutural ocorre na unidade a cada momento, desencadeada por interações com o meio onde se encontra ou como resultado de sua dinâmica interna. O resultado geral é que a transformação ontogênica de uma unidade não cessa até sua desintegração.
Ainda de acordo com Maturana e Varela, as interações entre organismo e meio sempre apresentam certo nível de perturbações recíprocas. Nestas interações a estrutura do meio apenas desencadeia as mudanças estruturais dos organismos não determinando nem instruindo tais mudanças. Da mesma forma, a atividade dos organismos desencadeia transformações no meio. Como resultado, sempre que a interação seja possível, existirá uma história de mudanças estruturais mútuas.
O acoplamento estrutural com o meio abrange todas as dimensões do organismo desde as interações celulares até a interação dos organismos enquanto unidades num contexto.
Este acoplamento estrutural é tão intenso que, nos sistemas biológicos, as estruturas se tornaram dependentes do funcionamento, se o funcionamento cessa as estruturas são destruídas. Em outras palavras, os organismos vivos devem estar em permanente processo de interação sem o qual sobrevém a morte ou um estado de “não-vida”.
Mesmos nos casos de dormência de sementes, por exemplo, que podem durar muitos anos, há certos processos mínimos de interação, pois quando as condições necessárias surgem, as sementes entram em germinação. De alguma forma, a organização vital da semente mantém-se em contato, ou seja, interagindo com o meio, pronta para mudar de um estado, aparentemente inativo, para um estado de atividade inquestionável.
Este fenômeno de dormência natural em algumas espécies pode, hoje em dia, ser artificializado, para determinados fins, como ocorre com as técnicas de congelamento de embriões de mamíferos. Nestes casos há interações “passivas” do embrião com “seu meio”, que devem ser especialmente selecionadas e mantidas “ativamente” pelos responsáveis pelo processo, pois os embriões devem ser mantidos em determinada temperatura em meios fisiológicos apropriados. Todavia, este é um estado de latência, pois a vida só será “retomada” quando novas interações forem estabelecidas entre os embriões e o meio, quando do seu descongelamento.
Maturana e Varela destacam que a fenomenologia dos organismos biológicos se distingue da fenomenologia física não porque viole suas leis, mas porque os fenômenos que geram ao operar como unidades autopoiéticas dependem de sua organização e do modo como esta se realiza, e não da natureza física de seus componentes.

É graças aos processos interativos que os organismos multicelulares se tornaram possíveis. A realização da autopoiese das diferentes células destes organismos, só ocorre quando estão estreitamente agregadas e para tanto as regulações biológicas são essenciais.

A criação dos organismos multicelulares pode ser considerada uma das experiências mais importantes da evolução. Uma de suas conseqüências, no entanto, foi o surgimento da morte como uma das necessidades da vida. Os organismos unicelulares, que se reproduzem por divisão celular, são potencialmente imortais. Quando uma ameba se divide, nenhuma das células resultantes pode ser considerada ancestral ou descendente, pois são irmãs. Uma ameba morre somente quando é consumida ou sofre um acidente. Porém a morte se torna uma parte essencial da vida para qualquer organismo celular que estabeleça divisão de trabalho entre suas células.

Vê-se que, de um lado, a multicelularidade amplia as possibilidades da vida e, por outro, sua organização deve estabelecer limites para essa vida, que variam de tecido para tecido. Desde a fase embrionária, algumas estruturas devem regredir para a formação de outras, nos processos de reconstrução ou transformação, que caracterizam muitas etapas embrionárias. Surge assim um novo tipo de organização: a limitação da vida.

A morte de certos indivíduos também pode garantir uma melhor sobrevivência de uma espécie. Um bom exemplo é o caso das borboletas multicoloridas, que têm sabor desagradável. Por ser colorida e diferenciar-se bastante do ambiente estas borboletas se tornam presas fáceis dos jovens pássaros, todavia seu sabor é tão desagradável que os pássaros as regurgitam e tendem a não mais provar outra. O indivíduo que participou do aprendizado do jovem pássaro pode ter morrido, mas os demais indivíduos bem como todas as outras espécies com asas de cores semelhantes terão suas chances de sobrevivência ampliadas.

Além da morte, outra característica marcante dos organismos multicelulares é a presença de uma etapa unicelular inicial. É justamente nesta etapa que surgem as maiores variações entre as gerações. A riqueza e variedade dos seres vivos estão intimamente ligadas ao surgimento da reprodução sexual, que possibilita a etapa unicelular do ciclo vital. Surge assim um novo tipo de organização que reúne reprodução com variação: reprodução sexual.

O surgimento da reprodução sexual estabeleceu uma necessária interação entre os indivíduos, que resultou numa rica recombinação estrutural. Este aumento da variabilidade estrutural tornou possível um novo nível de variabilidade multiplicador de linhagens.

Assim, quanto mais níveis de interações existirem num organismo, mais desenvolvida deve ser sua organização a fim de que se mantenha como uma unidade. Toda organização biológica reflete, portanto, a essência da vida como interação e auto-regulação. A organização biológica não implica a redução da riqueza da diversidade entre os seres vivos, pois há muitas possibilidades de dimensionar universos de interação por meio de unidades distintas.

O objetivo da organização biológica é conferir unidade à multiplicidade de células, tecidos e órgãos, que compõem os diversos níveis dos sistemas complexos. Entre tais sistemas destaca-se o sistema nervoso que surgiu como estrutura essencial para organização biológica dos organismos multicelulares, dando ao imenso conjunto de tecidos e órgãos um caráter de unidade em termos de funcionamento integrado. Entretanto, não se pode perder de vista que, ao mesmo tempo em que regula, o sistema nervoso é regulado pelo organismo, embora contenha milhões de células, todas elas são parte de um conjunto a cuja legalidade devem se ajustar.

Ao permitir o advento do comportamento, o sistema nervoso contribuiu de forma decisiva para a ampliação da capacidade de interação dos organismos com o meio, ampliando a percepção sensorial, a atividade motora voluntária, o armazenamento de vários tipos de memória, a atividade consciente e, ainda, no caso do ser humano, a ideação de situações futuras e a imaginação.

No momento em que surgiu como resultado da interação vital e por servir de base biológica para o desenvolvimento cognitivo, o sistema nervoso tornou a interação um elemento essencial à aprendizagem. Assim, o desenvolvimento da inteligência somente se processa através da ação dos sujeitos sobre o meio. A elaboração dos hábitos leva à formação de esquemas mais ou menos encaixados. As estruturas cognitivas não são aleatórias e apresentam uma história. A compreensão destes processos envolve o conhecimento tanto do conjunto dos componentes do sistema quanto das relações entre eles.

Todos os sistemas de conceitos, em todos os níveis de inteligência só funcionam no pensamento em ação, que assegura uma circulação contínua no conteúdo das idéias através de circunstâncias ou de problemas novos.

Piaget ressalta que há duas diferenças básicas entre as funções biológicas e o conhecimento: o grau de sucesso das formas de conservação e a dissociação entre forma e conteúdo. De modo que, com o desenvolvimento da inteligência, vemos na criança uma dissociação progressiva das formas e dos conteúdos, que permite a constituição de uma lógica reflexiva e a possibilidade de imaginação e da ideação do futuro.

Em resumo, o desenvolvimento da inteligência resulta de um tipo especial de adaptação da espécie humana ao meio. Por isso, a reflexão teórica sobre o significado biológico e as conseqüências dessa adaptação contribui para a compreensão desse tema, fornecendo um melhor embasamento ao ato pedagógico.

Por Gladis Franck da Cunha



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