quinta-feira, 31 de maio de 2012

O “problema educacional” não tem solução



“Ensine-me a fazer isso”. “Sim, eu ensino”. Essas duas frases deveriam estar no centro de toda e qualquer relação pedagógica. No entanto, não é o que ocorre. Da parte do estudante ou aluno, não ouvimos mais a primeira frase. Da parte do professor ou mestre, não ouvimos a segunda frase. Esse é o drama central em relação ao qual a filosofia da educação de nossos tempos não tem conseguido oferecer um bom recurso.
Toda relação pedagógica escolar, tanto a que envolve os jovens quanto a que envolve os adultos como estudantes, já há algum tempo, se inicia sem essas frases. O encontro entre professores e estudantes é um encontro artificial. Nenhuma das duas partes do encontro marcou o encontro pessoalmente. A agenda foi feita pela administração da escola: no dia X iniciam-se as aulas – é assim que se anuncia o encontro. Uma vez na mesma sala, o professor diz “vamos trabalhar com Y este semestre”. Os alunos, por sua vez, nada dizem. Alguns abrem seus cadernos e anotam: “matéria: Y”. Seria melhor ouvirmos algo como “ensine-me a fazer isso” e, em resposta, “sim, eu ensino”. Mas, não é o que ocorre. A relação pedagógica não começa (mais) pela idéia do ensino, por um pedido para aprender, e não é continuada pela vontade de atender ao pedido. Como pode alguma coisa desse tipo, tão visivelmente contraproducente, ser a regra de nossas escolas e universidades?
“Ensine-me a fazer isso” denota um desejo. Quem pronuncia algo assim sente a necessidade de aprender a fazer algo que não sabe fazer. Pede que aquele que sabe a ajude. “Sim, eu ensino” denota não um desejo, mas uma vontade. Quem pronuncia tal enunciado mostra que quer ver o outro aprendendo, quer deliberadamente ensinar o que não é sabido de modo que o outro possa fazer o que não saber fazer e quer fazer. Desejo de um lado, vontade de outro. Desejo e vontade são elementos do amor. Não à toa, entre os gregos, a melhor relação pedagógica era a relação de pederastia, na sua versão comum ou na sua versão modificada por Sócrates. Berço de nossa civilização ocidental, a Grécia antiga teceu a relação pedagógica como alguma coisa feita sob o comando de Eros. Tratava-se de algo do desejo de um lado, da vontade de outro. Um encontro antes erótico que intelectual. Um encontro intelectual e moral, porque erótico.
Foi exatamente isso que se perdeu. Deixamos de lado algo da simplicidade do “ensine-me a fazer isso” e “sim, eu ensino”. Substituímos isso por um palavreado que quer esconder, mas acaba é mostrando até demais, a artificialidade do encontro entre aluno e professor, estudante e mestre. Criamos a pedagogia para além da atividade do “escravo pedagogo”. Fizemos dela um conjunto normativo sofisticado. “Uma arte”, disseram certos teóricos. Para alguns, até mesmo “uma ciência”, como afirmaram outros. Mas, de qualquer maneira, a pedagogia se tornou uma longa narrativa antes apropriada a colocar mais palavras entre o estudante e o mestre do que se pode colocar no espaço que separa duas pessoas. A verborragia da pedagogia fez sucumbir o natural e produtivo “ensine-me a fazer isso” e “sim, eu ensino”.
A pedagogia despejou entre o espaço que separa estudante e mestre as doutrinas com os mais variados nomes: “escolanovismo” ou “construtivismo” ou “tornar o aluno crítico” ou “criar cidadão consciente” ou “engajar o aluno e o professor no projeto político-pedagógico da escola” ou “multidisciplinaridade” ou “interdisciplinaridade” ou “saberes complexos” ou “prontidão psicopedagógica” ou seja lá o que for. Há mais frases entre um aluno e um professor, hoje, do que qualquer vã ou não-vã filosofia da educação pode imaginar. Uma chuva de palavras lavou em direção ao rio o produtivo “ensine a fazer isso” e “sim, eu ensino”. Era simples demais isso! Como dar status à atividade pedagógica se toda a relação pedagógica pudesse ser descrita e resolvida nessa simplicidade?
Ora, mas por qual razão foi necessário dar status à atividade pedagógica? Ah, por uma razão evidente, mas que ninguém quer comentar. Quando a educação de um país não funciona exatamente porque falta investimento nos salários dos professores, e a vontade política da nação não se faz sentir nessa direção, então, o fracasso precisa ser pintado como algo devido ao fato de se estar diante de um monstro nada simples. A educação se faz passar por um grave problema, alguma coisa que tem um segredo que é preciso descobrir, que talvez em algum lugar do mundo se saiba, mas que é um segredo que esconde algo que não é simples. É ridículo para o país que não educa seus jovens admitir o fracasso exatamente no simples. Então, um país que não educa seus jovens, que se coloca nos últimos lugares do ranking educacional do mundo, precisa criar uma enorme literatura pedagógica. Toda essa imensidão de teorias educacionais, antes de dar solução para o problema, gasta páginas e páginas para provar que a educação é alguma coisa muito complexa.
Eis então que ocorre algo paradoxal. Em um país fracassado na educação, a literatura pedagógica aumenta assustadoramente. Ao mesmo tempo, o número de pesquisadores em pedagogia se torna um dos maiores do mundo. O número de programas de pós-graduação em educação supera o dos países desenvolvidos em muito. A atividade pedagógica se torna uma algo que demanda uma complicadíssima terminologia. Mas, ao mesmo tempo, pela quantidade, ela também se torna um discurso de todos. Assim, ao mesmo tempo em que a educação é vista como muito complexa, ela é passível de ser objeto de discurso de todos. Todos entendem de educação. Afinal, num país assim, é difícil quem não tenha um diploma de pedagogia ou um mestrado ou até mesmo doutorado em educação.
Em educação vive-se, então, a situação mais fabulosamente maluca: a escola está falida e todos possuem discursos miraculosos e altamente teóricos para criar experiências pedagógicas que salvariam todo o ensino. Mas, pela complexidade do discurso de todos, que são muitos, sempre há de se entender que qualquer solução proposta é para um pequeno grupo de escolas, nunca para todos. Democratiza-se o saber pedagógico para além da conta. Mas, ao mesmo tempo, não se democratiza a própria educação, objeto do tal saber pedagógico. O número de jovens aprendendo na escola diminui na proporção que aumenta o número de mestres e doutores em educação. Não à toa aumenta-se também a pesquisa em história da educação – em educação, na situação que estamos, restou-nos contar a história da escola, já que não temos mais a própria escola. Criamos a apologia da nostalgia em educação.
Vivendo dessa forma, o país que se enreda nesse problema, começa a gerar um mito, a saber: há um truque na educação e, embora tenhamos muitos livros sobre o assunto, esse truque permanece a sete chaves, preso no exterior. E o mito se desdobra: há países que sabem resolver problemas em educação. Mas eles não nos contam. Eles deram solução para seus problemas. Mas, não nos contam – que malvados! Temos de continuar a produzir pedagogias. Exportamos pedagogias até para eles. Mas, aqui, olhamos experiências isoladas, exatamente para mostrar que, em alguns lugares, há quem acerte. No entanto, esses que acertam são mostrados como heróis da abnegação. E como não há heróis da abnegação em todas as escolas, então, continuamos fracassando.
Surge daí a idéia de que o exterior não venceu por ter feito o professor ganhar mais e feito as escolas serem bem construídas e terem bom funcionamento. O exterior venceu por causa da abnegação de seus professores. O coreano deu aulas em baixo de chuva. O professor japonês é respeitadíssimo. A professora de um país pequeno da Europa é uma santa e assim por diante. O problema pedagógico, por mais complicado que possa ser mostrado nos programas de pós-graduação, é então dito como sem solução. Não é solucionável? A resposta é única: seria, se não fôssemos brasileiros. Se formos brasileiros, não adianta. Como brasileiros, não somos sérios. Os outros venceram com sacrifício e nós não estamos vencendo porque o nosso professor não se sacrifica e porque todos aqui são moles, nossos políticos são corruptos, a “educação não é prioridade” – há jargões para todo o tipo de gente. Por fim, vem o supra-sumo da ideologia, que aparece no discurso governamental e social: “salário não é tudo”. Ao pagarmos mais, é necessário mais cobrança – dizem todos. Eis então que vem a cobrança, sendo que o “pagar mais” não vem. “Ele virá, está no congresso a proposta X ou Y, aguardem!” Aguardem pisos, fundefs e outros animais.
Salário seria o combustível de Eros para que algo simples como o “ensine-me a fazer isso” e “sim, eu ensino” pudesse estar entre nós. Mas o simples não está entre nós. Não estará. Tudo é muito complicado em educação e, ainda por cima, não dá para fazer o que deve ser feito sendo brasileiro. É assim que devemos pensar e é assim que a TV, as revistas e, até mesmo o governo, diz que é a verdade da educação.
© 2011 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2011/04/19/o-problema-educacional-nao-tem-solucao/

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